24 de maio de 2013

Corpo.Barro


Sete luas de barro

Quando Pierre Verger fotografou o Mestre Vitalino em 1947, ele já vinha criando uma sequência  de imagens fotográficas de artesãos que trabalhavam com barro  mundo  afora. Com o passar do tempo vejo a cada leitura, a cada pesquisa, a cada novo contato, não só a presença do barro como matéria no repertório de muitos artistas e pesquisadores, mas também a presença do assunto barro.  O barro como assunto é um dos meus preferidos e, para um artista, o assunto é o pressuposto da obra. É o assunto que conduz, determina e até escolhe o suporte e muitas vezes gera outros assuntos... como o assunto corpo  invariavelmente leva à política, etc.  Esses assuntos flexionados acionam questões como, por exemplo,  CORPO+BARRO=OCO ou BARRO+OCO=BARROCO etc.

Aqui nesta exposição usei as flexões semânticas e imagéticas tendo a arte atual como dobradiça: flexiono a obra do Armando Queiroz, artista de Belém do Pará com a de um artista de Belo jardim, em Pernambuco, para produzir sentido e re-significar a idéia barro. Esse exercício de flexão ativa questões, como falei acima, e uma delas, que é tratada aqui na exposição, é a relação do corpo com o barro na arte contemporânea.

Mestre Galdino, quando produzia suas peças escrevia sobre elas, já o Mestre Vitalino usava a escrita em forma de imagem, contava a sua historia, não a pessoal, mas a sua realidade, a sua aldeia, o seu povo. Através do artesanato que produzia com barro, deu vida às cenas de retirantes, ao cangaço, ao dia-a-dia dos nordestinos. Para esta exposição CORPO BARRO  pensei em que nível de relação esses  quatro artistas flexionam suas ações para ativar questões assim como os mestres o fizeram.

Bruna Rafaella Ferrer usa o próprio corpo como suporte para o seu trabalho. Ao encostar sua pele sobre uma superfície e extrair dela marcas e relevos que ficam “impressos” por alguns instantes, ela se aproxima muito das incisões sobre o barro feitas pelos artesãos, como um furo para fazer o olho, um rasgo pra fazer a boca do boneco, etc. Armando Queiroz convida um ator que trabalha nas ruas de Belém como estátua viva para uma refeição filmada.  Ao comer, o ator denuncia a si mesmo como gente. Uma das peças do Mestre Vitalino que me inspirou para esta exposição foi um boneco numa mesa de cirurgia com as vísceras expostas. Isso de expor assim o corpo do boneco também o coloca no mesmo nível de “humanidade” do ator, que come com o corpo pintado de prata. 

Pierre Tenório com sua performance cuja ação não se sabia qual seria,  onde havia indícios de cantar uma música chamada “lama”, o happening dos acontecimentos insustentáveis, da improvisação, do lisérgico, também eram muito presentes no procedimento poético do Mestre Galdino. Suas peças, ao contrário do Vitalino, são “irreprodutíveis”, pois sua forma de contar a historia advém de outra grade processual, como a do “acidente”, por exemplo.

Eu lembro que, quando criança, as peças do Mestre Vitalino vinham com um grossa camada de tinta brilhosa e até hoje sinto o cheiro forte da tinta, as pintinhas brancas do boizinho malhado, cuja textura de tão forte que era, parecia caroços sobre a pele, como sinais. Lorane faz caldo de cana fervido virar tinta. Sobre as peças de barro das quais que ela se apropria para montar espécies de esculturas instáveis , a tinta doce com o fogo de um maçarico tatua o gesto dessa experiência com desenhos negros sobre a pele marrom do barro.

Vendo assim o conjunto das obras expostas, vem perguntas e também respostas: “ Isto é arte? Arte é isto! “ – Waltercio Caldas. No espaço entre a pergunta e a resposta fica um intervalo e é neste “entre-tempo” que eu proponho sentir. Sentir é a melhor maneira de apreciar uma obra de arte. E é este “sentir” que une os quatro artistas da mostra, mais o citado Pierre Verger e nossos dois Mestres, Vitalino e Galdino, como “ sete luas ” a serem contempladas.

Carlos Mélo - Curador da mostra Corpo.Barro


Mais: O Auto das Sete Luas de Barro, 1979. Peça de maior sucesso do Grupo Feira, consagra seu autor o encenador, Vital Santos, e consolida o grupo caruaruense na cena brasileira com o premio Molière de direção, em 1980 no Rio de Janeiro. O Auto das Sete Luas de Barro é, ao mesmo tempo, um instrumento de crítica social e de expressão poética, e dessa forma transcende a figura de Mestre Vitalino, utilizando-se de sua vida e obra não só para lhe dedicar uma merecida homenagem, mas também para tomar sua trajetória de miséria como metáfora e denúncia da exploração do artista popular.






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