TEXTOS

Bruna Rafaella Ferrer, 2010

Entidades Gráficas

Rabiscos de formas indefiníveis se espalham ao longo de um espaço arquitetônico interno, como raízes de uma árvore centenária se fixam ao chão, sobem paredes e teto. Os desenhos contaminam o ambiente como uma espécie de praga feita de pequenos musgos dentro de um organismo vivo maior, ou ainda como pequenas constelações dentro de um universo. Os desenhos nascem como escrituras, como uma carta feita para um amante de terras longínquas que não reconhece a língua originária de tal correspondência. Quando nos é dada a oportunidade de ver a artista em processo de confecção desses desenhos, percebemos que existe uma lógica interna e bastante precisa neste fazer. Diante da imaculada parede em branco, como se conversasse com o espaço, a artista passa a psicografar esse diálogo numa espécie de dança, embate entre a pedra dura da parede e o corpo mole em continuo exercício. Ora os rabiscos ficam mais cheios e rebuscados, mais cheios de energia, ora os riscos quase se esvaem, como um momento de silêncio na música interna que acompanha esta dança.

Aqui o silêncio, a falta de formas definidas ou de referência figurativa é uma forma essencial de composição. Nada está fixo, encerrado por um único sentido. De certa forma esses desenhos podem representar uma metáfora na produção da artista Bruna Rafaella Ferrer, que se contamina pelas diversas linguagens experimentadas nas influências que a vida vai propondo ao logo de sua jovem trajetória artística. Estes desenhos aparecem por toda parte, estão em agendas, na mesa de trabalho, na parede próxima a cama ou na porta de casa, são sempre esboços. Nas paredes de uma edificação, num espaço que lhe é reservado por excelência, se concretiza um desenho-projeto, em constante abertura de sentidos possíveis que repousam em cada consciência aberta para a interpretação. Nada está fechado. Nada está fixo. Tudo é puro fenômeno. Tudo é puro projeto. Sempre projeto em si mesmo numa avalanche de sentidos possíveis, que são únicos.

Cavalos, cabaninhas, bailarinas ou seres aquáticos se transformam, diante de nossos olhos, em estrelas, células ou flores dentro ou uma paisagem fantástica. Vemos essa paisagem de dentro, participamos, compomos esse cenário como uma dessas figurinhas mutantes. Como somos impelidos a entrar nesse universo e dar sentido a essas imagens, em alguns momentos nos fazemos mesmo como o lápis que dançou sobre as paredes desse desenho/instalação e que na maior parte do tempo guiou a mão da artista.

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Clarissa Diniz, 2010

Arqueologia de um Presente Contínuo

Talvez, dentre as diversas crises que a arte tomou para sim ao longo do último século, aquela que, por sua vez, mais tenha tomado Bruna Rafaella Ferrer, seja a da representação. Inevitalvemente, com ela, também uma crise do tempo e do espaço. Juntas, estas crises, colocam em xeque as definições de passado, presente e futuro. E, no cada vez mais inchado tempo presente, talvez assim o problema da representação do passado (como do futuro) se faça mais evidente. Infindas estratégias e experiências de representação precisam se instaurar, colocando em contato instâncias espaço-temporais outrora apartados por uma historicidade positivista. Nesse sentido, o presente reinventa a história na ânsia de reiventar a si próprio, adensando-se de passado e futuro. Arqueologias do Presente é uma das invenções.

Mesmo no namoro com a ciência, em seu desenrolar por entre o “espaço” da arte, essa arqueologia se dá num método necessariamente processual, num gerúndio prolongado que, quando desenho, ocupa paredes e tempo. Se, de um lado, nas fotografias da série arqueologias do presente, a artista “obedece” à metodologia científica de isolamento do objeto de seu sistema (ambiente) como forma de análise do mesmo, por outro lado, nos desenhos, Bruna promove um esbanjamento anticientífico, repleto de subjetividade. À aparente objetividade dos registros de uma arqueologia coletiva e social, resultado da surpresa diante de imagens invisíveis que se revelam para o olhar atento no cotidiano urbano homogêneo e anestesiante – imagens de vestígios de óleo, marca de pneus, impressão das grades, etc –, é somado um sujeito que não se quer ocultar por trás de sua própria representação, um sujeito que problematiza inclusive as estratégias de representação que criou para si. Nesse conflito – drama do indivíduo em sua deriva social –, que a artista assume em sua obra também por meio de um embate de procedimentos lingüísticos distintos, o corpo não se esquiva ao combate. Assume a crise da representação, do espaço e do tempo, e o vivencia também no caminho e no olhar, em pele e pressão. Diante do problema da representação, a experiência – e as verdades – da materialidade surge como um respiro possível e, para além de uma leitura racionalista (e representacional) da própria arte, Bruna Rafaella Ferrer nos faz ver que, mesmo que apenas por alguns instantes, talvez a parede guie o lápis que guia o braço que desenha sem saber o que está fazendo. Sem saber o que se é.
 
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Zeca Viana, 2009

brunaQUASErafaella

Quase figuras. Quase desenhos. Quase artista. Quase, quase, quase... Assim QUASE passeamos pela obra QUASE de Bruna Quase Rafaella. Quase, quase, quase... Quase figuras no sentido de não serem figuras prontas, elas precisam de ajuda para terem sentido, sempre de modo radicalmente individual. Quase desenhos no sentido de não serem desenhos fechados, ainda não são desenhos, estão "sendo" desenhos na medida em que se constroem com o sentido, independente da força da gravidade. Quase artista no sentido de não estar terminada, finalizada, encerrada ontologicamente. Bruna aqui está "sendo" artista. Aqui sua QUASE arte se apresenta em constante projeto, em constante abertura de sentidos possíveis que repousam em cada consciência aberta para a interpretação do Ser da obra. Nada está fechado. Nada está fixo. Tudo é puro fenômeno. Tudo é puro projeto. Sempre projeto em si mesmo numa avalanche de sentidos possíveis, que são únicos. Cabaninhas, fundo do mar, teoria da evolução das espécies, seres monomoleculares, entendidades matemáticas, quase, quase, quase... A lógica interna da obra está nas relações espaciais, no branco da matéria da obra, nos rabiscos aparentemente sem ordem. Entre folhas de papel, deitada no chão, desenhando, Bruna é QUASE Rafaella.

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Mariana Oliveira, 2007

A perseverança do desenho 

“O desenho é um fato aberto como a poesia, de uma veemência lírica muito mais livre e bem mais ativa que a pintura” Mário de Andrade

As linhas retas, curvas, paralelas, serpentinas cruzam o papel em busca umas das outras, delineando formas, criando relevos, sombras... O que faríamos se não pudéssemos usar o traço, seguir uma linha, vê-la encontrar-se com outras e criar, desse modo, representações visuais diversas, abstratas ou figurativas? A linha, essa invenção do homem, é um elemento fundamental na arte, seja ela clássica, barroca, moderna ou contemporânea. É exatamente na linha e no traço que a jovem artista Bruna Rafaella fundamenta parte do seu trabalho.

Parece que a artista consegue compreender o desenho como uma possibilidade real de criação livre, sem preocupar-se em trabalhar com linhas duras, estáticas e imóveis, que funcionam como camisa-de-força. Seguindo por um caminho completamente oposto, os desenhos de Bruna Rafaella parecem mover-se: suas linhas sinuosas e imperfeitas e seus pequenos pontos borrados criam corpos que se movimentam, fragmentam-se, que cadenciam o seu comunicar. O desenho em questão atesta um falta de esterelidade salutar, como se a qualquer momento a artista pudesse voltar a ele para mais uma interferência, mais uma confissão. Um croqui, uma obra aberta, onde não é permitido usar borracha e a iminência de qualquer “erro” transforma-se numa linha ou numa seqüência de pontos que fogem da perfeição.

O desenho implica também, talvez mais que qualquer outro suporte artístico, num momento de intimidade, cumplicidade, reclusão. É como um diário juvenil no qual se escreve as maiores revelações e desejos. Nessa obra, Bruna Rafaella nos revela um momento íntimo, e faz uso de um espelho oval para servir como modelo de si mesma. Mas o que será que vê a artista através do reflexo do espelho? Impossível definir, até porque o que vemos é um sujeito fragmentado, inquieto, que não nos deixa ver seu rosto, mas vive e está sentado, no chão, diante de um espelho. Seus traços dão à obra um tom confessional, coisa que, quiçá, uma pintura que retratasse o mesmo momento não lograria, pois esse caráter uterino só o desenho pode proporcionar.

Os traços da artista não são feitos apenas em nanquim sobre papel japonês, há recortes no papel que delimitam espaços, delineiam, também desenham. O primeiro grande recorte é aquele que delimita o papel no mesmo formato oval do espelho, mas não de forma hermética. Por sua delicadeza, o papel japonês, quando manuseado, pode criar rasuras que Bruna Rafaella transforma em imagens de seu desenho, detalhes integrantes da composição final, assim como as linhas em nanquim. Esses recortes terminam criando uma imagem, voluntária ou não, de uma paleta de pintura.

Porém, como deixar essas nuances perceptíveis ao espectador que observa a obra através de uma tela de computador? Há aqueles elementos palpáveis do próprio material utilizado (a textura, os veios do papel, sua transparência), o uso e a espessura do nanquim, que perdem parte de seu poder nessa forma de exibição. O desenho de Bruna Rafaella, apresentado dessa forma, foge de uma leitura inicial, preocupada apenas com a figura, e incita reflexões sobre o uso desse suporte “primitivo” numa tela. Para tornar visíveis virtualmente os recortes que existem na matéria, a artista destaca essas bordas com marcas em cinza, com uma sinalização do corte do papel, como aquelas pequenas tesourinhas ilustradas em revistas infantis que ensinam a recortar. Fica clara a diferença entre o desenho em nanquim, numa coloração mais escura, e os recortes marcados por um tom mais claro.

“O nanquim sobre papel quando figurativo e/ou abstrato é uma forma de desenho, bem como o papel cortado e seus contornos digitalizados”, revela a artista, deixando claro que suas opções por materiais que, de alguma forma, necessitam de sua realidade física para serem contemplados numa visão mais convencional, podem ganhar novas leituras quando digitalizados através de uma indicação visual ou de um segundo desenho que indique aquela realidade física.

Essas soluções são profícuas dentro desse desafio que é expor um desenho em um meio digital. Ao trabalhar dessa forma Bruna Rafaella desconstrói uma idéia superficial e recorrente do desenho como algo primitivo. Não se pode negar sua “ancestralidade”, palavra usada pela própria artista, mas ele mantém-se indelével, passando ao largo das mudanças de tendências e debates. Como bem disse Frederico Morais: “parece escapar à polêmica estéril entre vanguarda e retaguarda, entre o velho e o novo, navega imperturbável entre ismos e épocas”. 

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Clarissa Diniz, 2006

Uma carta, talvez

Todos os acontecimentos são improváveis.
Para ela, suas obras, como acontecimentos, simplesmente aparecem, manifestam-se como eventos – brotam num só fôlego. De tão acidentais, a ela soam simples e, talvez, óbvias. Não sabe ela que na simplicidade se pode enclausurar o sublime. (ou o sabe e finge não sabê-lo?)   
            Que finja ou que não finja, deposita em mim a tarefa de um sentido. Perdoe-me, querida, mas sei logo de minha incapacidade de fazê-lo. A amplitude da simplicidade me amedronta, e, acuada, resta-me somente a declaração de sensações que não sei se chegam a instaurar significações. Difícil, muito difícil penetrar em seu mundo e dele sair com malas de palavras, adjetivos. Ela é por demais degenerada para facilmente permitir-se a isso.
É-me até complicado falar de obras pontuais na exposição dela. Sinto-me impelida a tudo entender como uma coisa só: um ambiente, um sistema de sistemas. Um todo articulado que é, ao mesmo tempo, maior e menor do que a soma das partes. Um corpo de inconclusas significações multi-desenhadas. O encontro de dois ecossistemas: aquele que chega e aquele que convida, o público e a obra, o visitante e a artista.
            O luxo, a beleza, a luz, o brilho: elementos de lascívia que ali estão para seduzir-me, envolver-me. Não adianta prostar-me diante da obra: a escultura não tem massa, mas um corpo bem maior que o meu; o desenho não tem lugar, não tem moldura, e por isso expande-se além de minha visão; a luz é difusa, e, por sê-lo, está em todos os lugares; o valor simbólico da premiação transcende a faixa, a parede, e a todos e tudo atinge; os plásticos aguardam os corpos que neles reclinar-se-ão e, portanto, só são quando não os estamos mais observando, mas com eles fundidos; o som não se permite materializar. As obras esfacelam-se. Impossível abarcá-las, simbólica e fisicamente, com um abraço. E, em disseminação, convidam-nos a também escoar.
A experiência subjetiva e diluída do ambiente encontra, contudo, na ação da artista, um momento irônico. Ela opõe, à sincera originalidade de uma vivência, a fetichização da singularidade: organiza o lançamento de seu livro; dedica, um a um, os múltiplos de sua obra, desmultiplicando-os.
Numa atitude de delicioso contraste, ela nos vende, em verdade, não só a sua assinatura mas, mormente, a prova de que, em algum momento, já estivemos a ela relacionados, pois aquilo que compõe o livro, como toda a exposição, também se desfará. Restar-nos-á a capa que sugere que ali um dia houve um conteúdo, mas, sobretudo, a presença dela em interação conosco (as palavras que ela nos dedicou). Da mesma forma como nos concede a possibilidade de tomarmos, para nós mesmos, numa vivência, a sua obra, ela toma a obra dela para dentro de si, torna tudo ela.
            Seu Midnight Princess’ Diary, talvez mesmo o diário dela, torna-se artigo de luxo – a intimidade se deixa ostentar. Dentro de uma vitrine, o diário está à mostra, para ser visto, contemplado, investigado. Todavia, numa exposição onde há pouco para se enxergar e muito para se perceber de outras maneiras que não apenas através da visão, onde quase nada há sobre o qual se possa tomar posse, somente tal diário se coisifica. Ele e, de certa maneira, a moça por trás dele. Em Vitrines, quem mais se mostra é ela. Como o centro de seu próprio universo, nos convida a penetrar num ambiente que é muito mais ela do que os objetos que o compõem. A vivência que temos do seu ambiente é, no entanto, sentida não apenas pelo lado de fora da vitrine, mas também pelo seu interior – não somos observadores, mas partes integrantes.
            E então eu agora percebo que, mesmo antes da exposição, este texto já incorpora o espírito ostentatório e  fetichizador da exposição dela. Ora, mas que raios de texto é este que põe na artista o sentido da obra?